Edição ebook do Projecto Adamastor
Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficámos a olhar um para o outro… Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falámos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exacta daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres.
Ao contrário de todos os livros que escrevo aqui, Dom Casmurro será dos poucos onde uma sinopse não faz sentido. A sinopse conta o livro inteiro o que tornou a leitura bastante demorada tendo em conta que as primeiras duas frases da sinopse são 90% do livro e a ultima frase é o resto do livro. Por isso vocês se perguntam… por que é que quero ler um livro onde a sinopse conta a história toda? Não é para isso que lemos os livros? Para descobrir a história? bem neste caso não, nem por isso. Se querem saber a história leiam a sinopse e poupam o trabalho de lerem 330 penosas páginas onde a personagem principal, Bentinho (Dom Casmurro mais tarde) tenta desistir pelo seminário pela 45º vez para agradar a mãe.
Então a pergunta que se coloca é para quê ler Dom Casmurro? Ora porque a diversão da leitura não está no que está a ser mostrado ao leitor mas sim o que está a acontecer por trás, é o que o leitor não assiste e terá de entender para compreender o que as personagens estão a fazer.
Primeiro e mais importante, o livro é narrado por Bentinho, na primeira pessoa. Este tipo de narração é sempre bastante enviesado por estarmos a assistir a uma narrativa apenas com uma perspectiva. Nisto o leitor tem de estar bastante atento ao que Bentinho comenta e observa – a sua mãe e a sua obsessão com ele ser padre; Capítu que Bentinho acha linda mas José Dias a acha com “olhos de cigana” e “dissimulada” e até mesmo o amigo Escobar.
O leitor apercebe-se bastante rápido que Bentinho é tímido e muito pouco perspicaz, precisando constantemente de ajuda para fazer tudo na vida. A sua mãe quer que ele seja padre e Bentinho segue esse desejo; em jovem nota Capítu e assim que se apercebe que a jovem devolve os mesmo sentimentos tenta livrar-se de ser padre com a sua ajuda e a de José Dias. Bentinho quase nunca faz as coisas por vontade própria sendo preciso Capítu pressionar para que eles possam ficar juntos um dia. O sentimento que o leitor fica ao assistir à narração é que Bentinho vive a vida que os outros querem para ele e não a que ele quer para si. Não existe nenhuma declaração de amor que Bentinho faz a Capítu e bastantes vezes é a própria Capítu que tem de ameaçar ou tomar acção para que Bentinho ande das pernas.
Por aqui notamos que Bentinho é bem mais privilegiado que Capítu, onde Bentinho ao nascer teve a sua vida toda planeada pela mãe, Capítu precisa de efectivamente ser pro-activa e, por isso, é mais desenrascada e consegue mover mais a plot a seu jeito. Capítu pode ver em Bentinho um partido fácil de manipular e que lhe poderá dar uma vida confortável com luxos ao qual ela não tem acesso na sua infância. Bentinho vê em Capítu se calhar a única forma de conseguir uma vida sem ser a mando da mãe. Através do diálogo que Bentinho tem com a sua família compreende-se que ele não tem nenhum plano para quando chegar a padre. A sua vida seria vazia e sem sentido, ao passo que Capítu pode ser a forma dele se sentir como um homem de “família”, uma figura de poder e liderança que é a antítese da sua verdadeira personalidade.
Se Bentinho na primeira metade do livro é alguém insonso sem grande personalidade, após o casamento com Capítu a sua personalidade é revelada num homem mesquinho e aborrecido. Bentinho quer um filho e, embora demora algum tempo, Capítu consegue dar-lhe um. Mais tarde Bentinho nota que o filho não tem os seus tiques mas sim os tiques de outra pessoa, o seu melhor amigo, Escobar. Esta mudança em Bentinho dá-se quando vê Capítu a olhar com alguma adoração para Escobar e começa a desconfiar de uma possível traição por parte da mulher. Já que ele nunca desconfiara de tal traição, o leitor é também apanhado de surpresa. Bentinho continua a ver no seu filho a imagem do seu antigo amigo o que o leva a ciumes loucos, mesmo que Capítu negue tal traição.
E no final do livro temos a verdadeira questão do livro. Após termos lido toda a narração de Dom Casmurro, quem teria razão: Capítu ao dizer que não traiu e que Bentinho estava louco ao insinuar tal coisa, ou Bentinho?
Caro leitor – não existe resposta correta, contudo a minha é simples:
Capítu é inocente!
- Primeiro: Capítu nunca demonstra admiração por Escobar até ao momento do funeral e mesmo nesse momento Dom Casmurro está a ver uma reacção que e ele lhe parece de adoração. Na verdade Capítu poderia estar a ver em Escobar a figura de Dom Casmurro falecido e ela no papel de viúva.
- Segundo: Dom Casmurro vê em Escobar um amigo e tem uma certa adoração cega por ele, mais até do que Capítu. Ao ver o corpo de Escobar e a reacção de Capítu, Dom Casmurro pode ter ficado com ciumes de Capítu por não conseguir expressar o sentimento de adoração ao ver o corpo.
- Terceiro: A partir do funeral todos e quaisquer relatos feitos por Dom Casmurro são enviesados. Dom Casmurro já tem na sua cabeça a ideia de Capítu dissimulada e “olhar de cigana” como se fosse um olhar de uma adultéria. Mesmo que o filho não se pareça nada com o melhor amigo, nunca Dom Casmurro irá admitir isso por na sua cabeça a sentença já estar feita.
Apesar de achar que Capítu é inocente da sua traição e que Dom Casmurro conseguiu de facto produzir um herdeiro; o filho prova apenas que ele nunca conseguiu ser um homem de família/um chefe. A antítese de Escobar, um homem de família com bons negócios e uma boa família, Dom Casmurro perde tudo: o seu melhor amigo, a sua mulher e o seu filho tornando-se um homem vazio, já não é o chefe da família e já não é pai. A este ponto se calhar o leitor já notou que esta história é bastante parecida com a peça “Othelo” de Shakespeare…. Contudo existem pequenas diferenças que tornam Dom Casmurro mais amargo. Ao contrário de Othelo que se apercebe da injustiça, Dom Casmurro não tem a benesse de ter uma conclusão, é a sua própria casmurrice em negar-se a se calhar ver o óbvio que leva a que o seu final sozinho seja um bocado justiça poética. Othelo fora enganado e decidiu o seu destino; Dom Casmurro teve apenas a si próprio a culpar e viverá sozinho sem ser tudo aquilo que podia ser: um pai e um marido.
Dom Casmurro não é para ser lido como um livro onde descobrir a história é o mais importante mas sim a opinião do leitor no seu final. O que interessa no final não é se gostou do livro ou não, mas sim Capítu traiu ou não traiu?